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sexta-feira, 6 de junho de 2014
1 – TEMA: Trovadorismo. Contexto histórico. Poesia trovadoresca e suas principais características.
2 – PRÉ-REQUISITO:
Ler com compreensão.
Conhecer os principais eventos históricos de povos europeus, principalmente de Portugal.
3 – META: Ao final do estudo, você deverá ser capaz de:
interpretar textos
relacionar o período literário da língua portuguesa aos principais eventos históricos ocorridos em Portugal
identificar as características de uma obra trovadoresca
4 – PRÉ-AVALIAÇÃO: O objetivo da pré-avaliação é diagnosticar o quanto se tem conhecimento de um assunto. Para isso, basta que você responda à Auto-avaliação que está no início deste Roteiro, antes de ler qualquer texto existente nele. Se você alcançar um resultado igual ou superior a 80 pontos, não precisa estudar o assunto, pois você já o domina suficientemente. Caso contrário, vá direto para as Atividades de Estudo.
5 – ATIVIDADES DE ESTUDO: Ler com entendimento é pré-requisito para se aprender qualquer coisa através da leitura. Portanto, faça o seguinte:
a) Tenha um dicionário de Português ao seu alcance, para consultá-lo sobre as palavras que você desconhece o significado;
b) Procure um lugar sossegado para ler os textos e fazer os exercícios;
c) Leia primeiro o texto; faça em seguida os exercícios; compare suas respostas com o gabarito e veja o que errou; retorne ao texto para verificar o porquê do erro.
6 – PÓS-AVALIAÇÃO: Após ter feito o estudo dos textos e os exercícios, responda às questões propostas na Auto-avaliação. Creio que você agora, acertará todas. Caso isso não aconteça, consulte as orientações dadas nas Atividades Suplementares.
7 – ATIVIDADES SUPLEMENTARES: Se você não conseguiu alcançar 80 pontos na Pós-avaliação, volte à leitura dos textos, agora com mais atenção. Sem pressa. A leitura com compreensão é a base da aprendizagem.
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AUTO-AVALIAÇÃO
Responda à estas questões antes de ler qualquer texto deste Roteiro. Atribua 05 pontos para cada resposta correta. Se você alcançar 80 pontos na soma total, parabéns! Você não precisa estudar este Roteiro, pois já domina suficientemente o conteúdo existente nele. Caso contrário, leia as orientações das Atividades de Estudo.
O mais antigo documento da literatura portuguesa data de:
a. ( ) 1139 b. ( ) 1128
c. ( ) fins do século XII d. ( ) fins do século XI
2. O autor do mais antigo documento da literatura portuguesa é:
a. ( ) D. Dinis b. ( ) Fernão Lopes
c. ( ) D. Afonso Henriques d. ( ) Paio Soares de Taveirós
3. Uma das diferenças fundamentais entre as cantigas de amor e as de amigo é:
a. ( ) a autoria b. ( ) o eu-lírico
c. ( ) a língua em que eram escritas d. ( ) o caráter épico
4. Assinale a alternativa correta:
a. ( ) não houve prosa no período trovadoresco
b. ( ) a prosa, no período trovadoresco, sofreu a influência provençal
c. ( ) a prosa do período trovadoresco era exclusivamente histórica
d. ( ) a prosa do período trovadoresco era literalmente inferior à poesia do mesmo período.
5. A confissão da “coita d’amor”, amor respeitoso e platônico, vassalagem amorosa a uma dama inacessível são características das:
a. ( ) cantigas de amor b. ( ) cantigas de amigo
c. ( ) cantigas de escárnio d. ( ) cantigas de maldizer
6. A poesia, na Idade Média:
a. ( ) era independente da música
b. ( ) confundia-se com a prosa, pelo primitivismo da língua e dos recursos técnicos
c. ( ) era acompanhada de música
d. ( ) originou-se das antigas canções de gesta
7. “Estes meus olhos nunca perderán,
Senhor, gran coita, mentr’eu vivo for,
E direi-vos, fremosa mia senhor,
Destes meus olhos a coita que hán:
Choran e cegan quando’alguen non veem
E ora cegam por alguem que veem.
O texto acima é um(a):
a. ( ) soneto b. ( ) cantiga de amor
c. ( ) cantiga de amigo d. ( ) cantiga satírica
8. Refrão e paralelismo são recursos mais frequentemente encontrados:
a. ( ) nas cantigas de amor b. ( ) nas cantigas de amigo
c. ( ) nas cantigas de amor e de amigo c. ( ) nas cantigas de mestria
9. Dá-se o nome de “tenção” às cantigas de:
a. ( ) amor b. ( ) amigo c. ( ) mestria d. ( ) dialogadas
10. A chamada Época Provençal da literatura portuguesa caracterizou-se pelo fato de os:
a. ( ) escritores portugueses escreverem no dialeto provençal.
b. ( ) trovadores portugueses, independente do cunha nacional que imprimiam às suas cantigas, imitarem o trovadorismo de Provença.
c. ( ) trovadores portugueses falarem, em suas cantigas, da vida cortesã de Provença.
d. ( ) poetas portugueses traduzirem e cantarem as cantigas provençais.
11. “Ai, flores, ai flores do verde ramo
se sabedes (sabeis) novas do meu amado?
Ai, Deus, e u (onde) é (está)?”
Baseado nas características do período literário a que pertence o texto acima, escreva as palavras que completam as lacunas da frase abaixo:
Os versos pertencem a uma cantiga de (a) ____________, característica do (b) ______________ português, estética literária dos séculos XII, XIII e XIV.
12. Assinale 1 para as cantigas de amigo; 2 para as cantigas de amor; 3 para as cantigas de escárnio:
a. ( ) “Senhor fremosa (formosa), pois me non queredes
creer a coita (dor) en que me ten amor,
por meu mal é que que tan ben parecedes
e por meu mal vos filhei (tomei) por senhor”
b. ( ) “Ai dona fea! foste-vos queixar
porque vos nunca loei (louvei) em meu trobar (cantar)
mais ora quero fazer un cantar
em que vos loarei (louvarei) toda via
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!” (louca)
c. ( ) “Bailemos nós já todas três, ai amigas,
so (sob) aquestas avelaneiras frolidas (floridas)
e quen for velida (bela), como nós, velidas (belas)
se amigo amar,
so aquestas avelaneiras frolidas
verrá (virá) bailar”
13. “Coube ao século XIX a descoberta surpreendente da nossa primeira época lírica. Em 1904, com a edição crítica e comentada do Cancioneiro da Ajuda, por Carolina Michaelis de Vasconcelos, tivemos a primeira grande visão de conjunto do valiosíssimo espólio descoberto.” (Costa Pimpão).
A afirmativa se refere a uma época literária. Responda:
a) qual é essa “primeira época lírica” portuguesa?_________________
b) que tipos de composições poéticas se cultivavam nessa época?
14. Assinale a alternativa INCORRETA a respeito do Trovadorismo em Portugal:
a. ( ) Durante o Trovadorismo, ocorreu a separação entre a poesia e a mú- sica.
b. ( ) Muitas cantigas trovadorescas foram reunidas em livros ou coletâne-as que receberam o nome de cancioneiros.
c. ( ) Nas cantigas de amor há o reflexo do relacionamento entre senhor e vassalo na sociedade feudal: distância e extrema submissão.
d. ( ) Nas cantigas de amigo, o trovador (sempre um homem) escreve o poema assumindo o papel feminino.
15. Assinale a alternativa INCORRETA sobre as cantigas de amor:
a. ( ) Apresentam forte influência provençal e eu-lírico masculino.
b. ( ) Têm uma linguagem mais sofisticada que as cantigas de amigo.
c. ( ) Seu tema é o sofrimento amoroso ocasionado, em geral, pela dife-rença social existente entre o trovador e a amada.
d. ( ) A mulher amada, ou ignora a paixão do trovador ou está ciente dela e a despreza.
16. Qual a obra literária considerada o marco inicial do período trovadoresco em Portugal?
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Gabarito
1. c 2. D 3. B 4. D 5. A 6. c 7. B 8. B 9. D 10. B
11. a) amigo b) trovadorismo
12. a.(2) b.(3) c.(1)
13. a) o Trovadorismo b) as cantigas de amigo, de amor, de escárnio e maldizer
14. Letra A
15. Letra A
16. A Cantiga da Ribeirinha.
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ANEXO A – Contexto Histórico do Trovadorismo em Portugal
Principais acontecimentos históricos de Portugal e do Mundo Conhecido
Ano Acontecimento histórico
1308 Fundação da Universidade de Coimbra
1415 Conquista de Ceuta
1420 Início da expansão marítima: descoberta da Ilha da Madeira
O Trovadorismo ou Época Provençal – primeira época literária da língua portuguesa – estendeu-se de 1198 (data do mais antigo documento literário português, a cantiga A Ribeirinha, dedicada pelo autor Paio Soares de Taveirós, à dona Maria Pais Ribeiro, amante do rei D. Sancho I) a 1418, cerca de 220 anos, quando Fernão Lopes foi nomeado guarda-mor da Torre do Tombo, que era o arquivo histórico de Portugal.
Essas datas nos mostram que o início da literatura portuguesa está bem próximo da Independência de Portugal, conquistada em 1128, mas reconhecida por Castela apenas em 1143.
Historicamente, é um período marcado por lutas contra os árabes, cuja expulsão definitiva se deu no século XIII. Como em qualquer outro período, a literatura vai apresentar características que, direta ou indiretamente, refletem a sociedade da época.
Apesar de Portugal não ter conhecido as formas ortodoxas do feuda-lismo econômico, muitos dos relacionamentos sociais documentados na literatura da época, são tipicamente feudais. É também marcante, na cultura portuguesa desse período, a influência da Igreja Católica, que marcou profundamente a forma de encarar o mundo. A esta postura perante o mundo, fundada na ideia de que Deus é o centro do Universo, dá-se o nome de Teocentrismo, característica importante da cultura medieval, que aparece em várias de suas manifestações. O teocentrismo está muito bem caracterizado no texto abaixo de Hernani Cidade, contido na obra O Conceito de Poesia como expressão de cultura.
“Um movimento como o das Cruzadas – que procurava sublimar, na guerra contra o infiel, as grandezas e misérias da combatividade e da ganância; uma criação como a catedral gótica ou como a Divina Comédia, de Dante (século XIII), que erguiam à morada de um Deus pessoal, de presença vivamente sentida, os próprios anseios que partiam das profundezas torvas das almas, tal como as agulhas e flechas se erguiam dos subterrâneos das fundações; uma obra de pensamento como a Summa Theologica, que era, na ordem do saber, como na ordem do poder, a teocracia de Gregório Magno, a tentativa e o esforço de tudo subordinado a Deus – interesses da inteligência tanto como da vontade – e tudo coroado pela Imitação de Cristo, alto voo místico, que fecha, no século XV, na ordem da inteligência, a ascese que na ordem da ação o franciscanismo realizara – eis os aspectos que definem a Idade Média como a idade do que podemos chamar de Teocentrismo.”
(Curso Abril Vestibular, Fascículo 1, 1ª. Edição)
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ANEXO B – Origens e influências no trovadorismo português
O Trovadorismo também conhecido como Época Provençal, tem esse nome em razão de que na região sul da França, conhecida como Provença, foi desenvolvido entre os séculos XI e XIII, a arte dos trovadores. Nessa época, os cavaleiros permaneciam mais tempo em suas casas, a vida nos castelos já tinha uma organização intensa, seus salões eram um polo fundamental de convívio e as mulheres começaram a adquirir uma posição importante dentro dessa organização, especialmente no sul da França.
No que tange à literatura, a França teve dois polos que emanaram influências importantes para o mundo literário da época: ambos desprezavam o Latim como meio de expressão e ambos refletiram diferentes aspectos do mundo medieval. A Região Norte da França produziu uma literatura épica, de caráter guerreiro e individualista, em que a mulher exercia uma função secundária: são os trouvères com sua épica. Na Região Sul da França, onde o feudalismo levou mais tempo para se diluir, surgiu uma lírica sofisticada, da qual o amor e a mulher eram os temas centrais: são os troubadours (trovadores) com sua lírica. Foi a partir dessa duplicidade que a literature europeia se expandiu.
Apesar de o lirismo trovadoresco ter declinado na França a partir do século XIII – com as intervenções da Igreja Católica, que passou a impor o culto à Virgem Maria como tema aos trovadores – sua influência já era percebida em toda a Europa, cujos países souberam incorporá-la às suas próprias tradições. Foi o que aconteceu em Portugal.
Dentre os fatores que concorreram para a influência provençal na Literatura Portuguesa temos:
casamentos entre reis lusitanos e mulheres nobres do sul da França;
um dos reis de Portugal, D. Afonso III, viveu vários anos na França e quando retornou a Portugal trouxe na sua comitiva, trovadores provençais e um padre para cuidar da educação de seu filho, D. Dinis, este que foi um dos maiores trovadores lusitanos.
o comércio, os movimentos militares, os menestréis (que se apresentavam em praça pública)
a criação de bispados na Península Ibérica e as Cruzadas
A civilização provençal era muita mais requintada que a portuguesa. Daí ser a responsável por uma certa aristocratização da poesia portuguesa, que era muito mais visível nas cantigas de amor. As cantigas portuguesas eram transmitidas oralmente. Mas num determinado momento da história de Portugal, um rei mandou copiá-las em livro. Tais livros chamam-se Cancioneiros. Graças a eles é que hoje podemos ter conhecimento do que estamos informando aqui. Os mais importantes Cancioneiros são: da Ajuda, da Biblioteca Nacional e da Vaticana.
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ANEXO C – Características do Trovadorismos. A poesia trovadoresca.
O Trovadorismo é um movimento de caráter exclusivamente poético. As composições líricas desse período são chamadas de cantigas porque eram efetivamente cantadas com acompanhamento de instrumentos musicais que incluíam violas de arco, flautas, alaúdes, pandeiros. Os que cultivavam esse tipo de poesia eram chamados genericamente de trovadores, embora houvesse diferença entre os autores e intérpretes dessas cantigas. Ostrovadores eram aqueles compositores que tinham origem nobre e que efetivamente compunham as cantigas; osjograis não eram fidalgos e cantavam composições próprias ou alheias em troca de pagamento (eis aí a origem dos cantores de rádio e televisão do século XX!); os segréis eram os jograis da Corte.
A literatura trovadoresca portuguesa é composta por poesia e prosa, mas a mais importante manifestação literária dessa época é a poesia representada pelas cantigas líricas – as de amor e de amigo; e cantigas satíricas – as de escárnio e maldizer.
1. Cantigas líricas: cantigas de amigo.
Muitas das cantigas de amigo portuguesas são anônimas e várias delas se perderam no tempo, por causa da sua origem oral e popular e a despreocupação inicial em fixá-las pela escrita. A influência provençal fez a tradição popular chegar aos palácios, de modo que os trovadores passaram a compor também as cantigas de amigo.
As cantigas de amigo são poemas líricos que contém a confissão de uma moça do povo, cujo sofrimento amoroso é causado pela ausência ou abandono do “amigo”, isto é, do namorado ou do amante. Expressam um amor mais sensual, mais vivo, talvez pelo contacto com a natureza, cenário da maioria dessas cantigas.
Apesar de expressarem o sofrimento amoroso da mulher, esses poemas foram escritos por homens que apresentam oeu-lírico feminino: o trovador assume o papel da mulher. Cabe aqui lembrar que o autor das cantigas sempre era um homem, pois as mulheres não tinham o direito de aprender a ler e escrever. Não há registro efetivo de nenhuma cantiga de amigo composta por mulheres.
É importante que se compreenda o conceito do “eu-lírico”. O eu-lírico é a pessoa que fala nos poemas líricos. Não é, necessariamente, autobiográfico. É tão ficção quanto os personagens criados por um romancista. Assim podemos dizer que, nas cantigas de amigo, o eu-lírico é feminino, enquanto que o autor é masculino.
O “amigo” a que se refere as composições é, na verdade, o namorado ou o amante. Várias dessas cantigas eram cantadas em festas, comemorações e rituais ligados à chegada da primavera. Por isso sua ligação com a dança e a música era mais efetiva do que nas cantigas de amor.
As cantigas de amigo apresentam três possibilidades de ambiente e roteiro:
a) cantigas de inspiração campestre relatando o encontro entre namorados numa fonte; ou a moça lamentando a ausência do amado que partiu para a guerra e não deu mais notícias ou que desapareceu sem cumprir as promessas feitas.
b) Cantigas em que a moça aguarda o namorado que vem pedir sua mão em casamento. Muitas vezes a moça se revela esperta, consciente da sua capacidade de seduzir e de provocar ciúmes.
c) Cantigas já adaptadas ao ambiente da Corte, nas quais o trovador, assumindo o papel da mulher, procura expressar o que ele supõe ser o lamento dela pela ausência do amado.
A vida cotidiana, a saudade do amigo que partiu para a guerra, o ciúme, a indignação, a vaidade de se saber bela, encontros fortuitos, bailes, festas, o colorido do mundo medieval português podem ser identificados nessas cantigas. Elas possuem uma tal beleza que permite ao leitor entrever os sentimentos que as motivaram. Na maior parte das vezes, a mulher não se dirige diretamente ao homem amado – adota uma confidente que pode ser a amiga, a irmã, a mãe ou um elemento da natureza. Veja o exemplo abaixo:
“Ondas do mar de Vigo1,
se viste meu amigo?
E ai Deus se verrá cedo!2
Ondas do mar levado3,
se viste meu amado?
E ai Deus se verrá cedo!
Se viste meu amigo,
o por que eu sospiro?4
E ai Deus se verrá cedo!
Se viste meu amado,
por que ei gran coidado?5
E ai Deus se verrá cedo!
(Martim Codax. In: Torres, Alexandre Pinheiro, Antologia da poesia portuguesa. Porto: Lello & Irmão, 1977)
Vocabulário
1 – Vigo: praia da região da Galiza, norte do Rio Minho
2 – se verrá cedo: ele virá logo
3 – mar levado: mar agitado
4 – o por que eu sospiro: por quem eu suspiro
5 – por que ei gran coitado: por quem eu tenho muito carinho, cuidado
2. CANTIGAS LÍRICAS: Cantigas de amor
Embora Portugal não tenha tido um feudalismo na mais pura expressão da palavra, as cantigas de amor lusitanas refletiam a estrutura da sociedade feudal por causa da influência provençal. A submissão do vassalo (criado, servidor) ao seu senhor (nobre, dono das terras onde morava o vassalo) é transferida para o mundo das relações amorosas, e o mandamento número um do trovador é a fidelidade e submissão absoluta a sua musa.
As cantigas de amor contêm a confissão do sofrimento (coita) do trovador, que padece por amar uma dama (senhor) inascessível. Sofre pela impossibilidade de ver realizado o seu desejo de amor, já que a dama pertence a uma classe social superior a dele – ela é esposa ou filha de um nobre; ele, um servo. Tal inacessibilidade da mulher, em parte, representa o profundo distanciamento que, na Idade Média, existia entre as classes sociais. O amor que o poeta expressa é sempre platônico e respeitoso. O trovador reitera a promessa de servir, honrar, respeitar e nunca revelar a identidade da sua amada.
Ora, sabemos que esse tipo de poesia saiu dos palácios, foi feita principalmente por nobres e a impossibilidade do trovador ter o seu desejo realizado ocorreria apenas em tese. Trata-se, portanto de um fingimento poético.
Um tema frequente é o panegírico impossível ou elogio impossível: a mulher amada é a mais bela de todas; é um ser divino. Mas ela é indiferente aos sentimentos do poeta. Ela não os conhece e, se sabe da existência deles, os despreza. É chamada de dame sans merci (dama sem piedade, sem compaixão). Esse amor impossível e inevitável faz com que o eu-lírico sofra por tornar-se prisioneiro desse sentimento e maldiga o dia de seu próprio nascimento.
As cantigas de amor apresentam uma linguagem mais erudita e sofisticada do que as de amigo. Sua estrutura é menos repetitiva, podendo apresentar ou não um refrão. O uso da palavra “senhor” (no masculino) nessas composições indicava a origem nobre da dama. Nessa época, era usada tanto para o homem como para a mulher, pois a palavra ainda não tinha ganho a terminação “a” para indicar o gênero feminino.
Abaixo apresentamos um fragmento da Cantiga da Ribeirinha, exemplo de cantiga de amor:
“No mundo non me sei parelha1
mentre2 me for como me vai
cá3 já moiro4 por vós – e ai!
mia Senhor branca e vermelha5
queredes que vos retraia6
quando enton vos vi em saia!7
Mau dia me levantei,
Que8 vos enton non vi fea!
E, mia Senhor, des aque’di’ai!
me foi a mi mui mal;
E vós filha de Dom Paay
Moniz, e bem vos semelha(9)
d’haver eu por vos guarvaia(10)
pois eu, mia Senhor, d’alfaia
nunca de vos houve nen hei
valia d’uma correia(11) (Paio Soares de Taveirós)
____________________________________________________________
Vocabulário
1 – non me sei parelha: não sei de coisa semelhante
2 – mentre: enquanto
3 – cá: porque
4 – moiro: morro
5 – branca e vermelha: branca e com as faces rosadas
6 – queredes que vos retraia: quereis que vos retrate
7 – em saia: em roupas íntimas ou sem manto
8 – que: pois
9 – semelha: parece
10 – d’haver eu por vos guarvaia: que eu deva receber, por vosso intermédio, um traje de luxo
11 – valia d’uma correia: qualquer coisa de pouco valor
3. CANTIGAS SATÍRICAS: Cantigas de escárnio e de maldizer
São poemas satíricos que usam a sátira indireta (cantigas de escárnio), ora a sátira direta (cantigas de maldizer). Pelo seu caráter circunstancial, as cantigas satíricas são consideradas inferiores às líricas, apesar de documentarem, através da ironia, os costumes da sociedade da época.
As cantigas satíricas revelam o mundo boêmio e marginal dos jograis, fidalgos, bailarinas; enfim, dos artistas da corte, aos quais se misturavam religiosos e até mesmo reis. Um mundo com um código de ética próprio, que admitia certa liberdade de hábitos e costumes não partilhada pela sociedade em geral.
Com a finalidade de fazer críticas mordazes e com humor, muitos eram os temas das cantigas satíricas: os costumes, principalmente do clero; a covardia; a decadência de alguns nobres; os vilãos (aqui se referem às pessoas que moravam nas vilas medievais); o adultério das damas; os homens sovinas; os pobres que viviam de aparência; as mulheres feias; os beberrões.
As cantigas de escárnio são aquelas que fazem a crítica indiretamente, de forma sutil, sem indicar o nome da pessoa satirizada, lançando mão de uma linguagem mais velada, que muitas vezes admite duplo sentido, sem deixar de lado o aspecto humorístico.
As cantigas de maldizer fazem a crítica rude, direta, mencionando o nome da pessoa criticada, usando palavrões e, muitas vezes, enveredando pela obscenidade. Sua linguagem é chula e não se utiliza de ambiguidade.
Exemplo de cantiga de escárnio:
I. Se um rapaz e uma donzela,
Ficassem juntos na mesma cela…
Ó casal abençoado!
O amor tempera
Anima o noivado:
O tédio se oblitera.
II. Brincam juntos num só gesto
De bocas, pernas e o resto!
Ó casal abençoado…
Exemplo da cantiga de maldizer:
Eu sou o abade de Cocanha
E o meu capítulo são monges beberrões
E meu conselho é a confraria dos jogadores,
E quem me procurar na taberna ao cantar do galo,
Sairá de noite, liso e sem roupa,
E cantará, despido, o seguinte lamento:
Socorro! Socorro!
Quanto azar, dados malditos!
Estamos fritos,
Pobres e aflitos!
(Maurice van Woensel. Carmina Burana. Apresentação de Segismundo Spina, São Paulo, Ars Poetica, 1994)
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Exercícios:
Os textos abaixo são de cantigas medievais e foram adaptados para o português atual. Identifique cada uma de acordo com as características das cantigas de amor, de amigo, de escárnio ou de maldizer.
a) A dona que eu sirvo e que muito adoro
mostrai-ma, ai Deus! pois eu vos imploro
se não, dai-me a morte. (Bernardo de Bonaval)
b) Trovas não fazeis como provençal
mas como Bernardo, o de Bonaval.
O vosso trovar não é natural.
Ai de vós, com ele e o Demo aprendestes.
Em trovardes mal, vejo eu o sinal
das loucas ideias em que empreendestes.
Por isso, D. Pero, em Vila-Real,
Fatal foi a hora em que tanto bebestes. (D. Afonso X, o Sábio)
c) Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai, Deus, onde ele está? (D. Dinis)
d) Ai, dona feia, foste-vos queixar
de que nunca vos louvei em meu trovar;
e umas trovas vos quero dedicar
em que louvada de toda maneira sereis;
tal é o meu louvar:
dona feia, velha e sandia! (João Garcia de Guilhade)
____________________________________________________________
Gabarito
a. cantiga de amor
b. cantiga de maldizer
c. cantiga de amigo
d. cantiga de escárnio
______________________________________________________________
ANEXO D – SÍNTESE DAS CARACTERÍSTICAS DAS CANTIGAS TROVADORESCAS
Cantigas de amor Cantigas de amigo Cantigas de escárnio Cantigas de maldizer
O trovador assume o eu-lírico masculino: é o homem quem fala. O trovador assume o eu-lírico feminino: é a mulher quem fala.
O objeto é sempre uma dama, “se-nhor”. O objeto é o ami-go: namorado ou amante. Os objetos são pessoas, costu-mes e aconteci-mentos sem reve-lação da identida-de da pessoa en-volvida O objeto são pessoas, costumes e acontecimentos com identificação da pessoa envol-vida
O objeto é idealizado pelas suas qualidades físicas, morais e sociais: beleza, bondade, lealdade, conheci-mento social. O objeto é caracterizado pelas su-as qualidades ne-gativas: mentiroso, traidor, desleal. Censura indireta aos vícios ou defeitos, através de ironia e sarcarmos. Censura e ridicularização direta à defeitos e vícios.
Expressa sentimentos de dor e mágoa por amar uma mulher inascessícel. Expressa os sentimentos femininos de saudades pela ausência do amigo o namorado ou amante. Utiliza linguagem bem popular, com duplo sentido e humorístico. Utiliza linguagem grosseira, de sentido direto e, às vezes, obsceno.
O cenário é a na-tureza e a corte O cenário é o campo, o mar e a casa
Sua origem é pro-vençal. Teve origem na Península Ibérica.
Os principais recursos poéticos empregados pelos trovadores são:
Refrão – o mesmo que estribilho, ou seja, a repetição de um ou mais versos em cada estrofe.
Paralelismo – repetição de uma ideia já expressa numa estrofe anterior, com pequenas alterações de palavras.
Tenções – cantigas em forma de diálogo
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LEITURA COMPLEMENTAR
O “amor cortês”
Em sociedade tão fechada, de estrutura medieval, o amor – o grande e eterno tema – vai ser uma manifestação de vassalagem feudal, já que as formas de vida e de pensamento são também feudais. O que significa que o feudalismo engendra uma maneira de pensar feudal, como hoje o capitalismo engendra uma maneira de pensar capitalista. O amor trovadoresco, o “amor cortês” (já que é esta sua designação típica), exigia que a mulher que se cantava fosse casada, fundamentalmente porque a donzela não tinha personalidade jurídica, uma vez que não possuía nem terras, nem criados, nem domínios, não era domina (“dona”). Em suma: não dispunha de “senhorios”. Ora, o poeta não vai prestar “serviço” a uma mulher que não seja “Senhor”, e nós encontramos extensamente o verbo servir como sinônimo de “namorar”, “fazer a corte”, etc.
Aliás, os casamentos entre a gente nobre faziam-se por conveniência e não por amor. Assim, o “amor” era algo de que “senhor” dispunha para conceder ao trovador que, encontrando-se ao seu “serviço”, ela achasse digno de receber o respectivo “galardão”, que podia ir ao extremo limite de favores corporais. Mas o “galardão” podia ser apenas (e era-o geralmente) a pura aceitação pela dama, do pleito de vassalagem do trovador.
(TORRES, Alexandre Pinheiro. Antologia da poesia portuguesa. Porto, Lello e Irmão, 1977)
Originalmente publicado em
http://portugues.camerapro.com.br/literatura-3-trovadorismo-portugues-contexto-historico-a-poesia-trovadoresca/
terça-feira, 3 de junho de 2014
Análise 01 - Farsa de Inês Pereira
Escrita em 1523 em resposta a um desafio,
a Farsa de Inês Pereira é a peça mais bem-acabada de Gil Vicente,
dramaturgo que inaugurou o teatro português. Construída a partir de um dito
popular, a peça testemunha o conflito de valores que caracterizou o humanismo
em Portugal.
O AUTOR E
A ÉPOCA
Durante a
Idade Média portuguesa, os tipos de representação mais conhecidos foram os
mistérios (encenação de episódios da vida de Cristo e dos santos) e os milagres
(apresentação cênica de milagres operados pelos santos e pela Virgem), mas não
eram, a rigor, teatro, uma vez que essas composições não utilizavam a
fala. Quando Gil Vicente começou a escrever, não havia, portanto, modelos
portugueses que ele pudesse seguir. Por isso se inspirou no espanhol Juan del
Encina e produziu um teatro que, em Portugal, era uma grande novidade, conforme
afirmam testemunhos da época: "E vimos singularmente fazer representações
de estilo mui eloquente, de mui novas invenções, e feitos por Gil Vicente; ele
foi o que inventou isto cá, e o usou com mais graça e mais doutrina posto que
Juan del Encina o pastoril começou."
O MOMENTO
HISTÓRICO
O Portugal
do século XVI é uma nação rica em conquistas ultramarinas, mas deficiente em
produção agrícola e manufatureira. Para conseguir abastecer-se internamente a
única saída é trazer ouro e prata das viagens além-mar. A crise econômica gera
um descontentamento que ameaça os antigos valores, dissolvendo a aliança entre
clero e nobreza, entre mercadores e soberanos. Essa crise é retratada na obra
de Gil Vicente pelas personagens que buscam enriquecer a qualquer preço,
aproveitando a situação caótica do país.
EUROPA X
PORTUGAL
Em toda a Europa, o século XVI é o momento de
ascensão da burguesia, valorização da ciência e do homem e questionamento da
Igreja, com a Reforma protestante. Em Portugal, entretanto, desenvolve-se um
humanismo um pouco diferente: as ciências são valorizadas, mas o poder da
Igreja e da nobreza não é questionado. Muito pelo contrário: a Inquisição e a
Companhia de Jesus são os principais instrumentos da Contrarreforma, que chega
para reprimir a cultura humanista proporcionada pelo contato com outras
culturas, decorrente dos descobrimentos.
RELIGIOSIDADE
E REFORMISMO
Gil Vicente vive numa época de transição de
valores: os ideais medievais se chocam com a realidade renascentista. Esse
choque aparece nitidamente em sua obra. Critica os maus padres, mas poupa a
Igreja; critica os maus nobres, mas não questiona o poder real. Os valores
medievais são representados pela forte religiosidade, pela instituição da
Igreja, pelos dogmas da fé. Por outro lado, o espírito reformista aparece na
crítica aos padres que têm uma vida desregrada e exploram a ingenuidade dos
crentes para manipulá-los. Um exemplo disso é o sermão em que Gil Vicente
procura explicar racionalmente as causas do terremoto ocorrido em Lisboa,
enquanto os padres diziam que era a ira de Deus manifestando-se contra a falta
de fé dos cristãos-novos – os judeus convertidos ao cristianismo para escapar
da Inquisição. Trazendo flashes da vida social para o teatro,
as peças conquistam o público pela simplicidade com que mostram as falhas
humanas, para que as pessoas possam se corrigir e receber as bênçãos da vida
eterna. As peças conquistam o público pela simplicidade e divertem ao mesmo
tempo que ensinam.
Anote!
Gil Vicente é importante na
literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de seu tempo,
mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade, desde os
problemas domésticos mais corriqueiros até os mais complicados conflitos
morais.
O GÊNERO
Gil Vicente é um artista medieval escrevendo em
plena Renascença, momento em que as próprias estruturas da arte estavam se
transformando. O auto, gênero muito popular até então, caracterizava-se pelo
conteúdo simbólico: os atores representavam entidades abstratas de caráter
religioso ou moral, como o pecado, a hipocrisia, a luxúria, a avareza, a
virtude, a bondade etc. Embora a Farsa de Inês Pereira tenha sido
publicada primeiramente como Auto de Inês Pereira, o conteúdo da peça não
corresponde às exigências do auto. Gil Vicente criou um novo gênero para o qual
não havia um nome na época, a farsa.
Anote!
A farsa é um tipo de
encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida cotidiana,
apelando para a caricatura e os exageros, a fim de fazer o espectador rir, mas,
ao contrário da comédia, não tem um fundo moralizante.
DESAFIO: UM DITO POPULAR
A popularidade de Gil Vicente despertou em seus
inimigos dúvidas sobre a autenticidade de suas peças. Em resposta a um desafio
do dramaturgo, os invejosos lhe propuseram como mote o ditado popular
"mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube". A
resposta veio com a Farsa de Inês Pereira, de 1523. O equilíbrio da ação,
a graça das situações e o jogo de contrastes fizeram da peça a mais bem-acabada
do teatro vicentino. Apesar de apresentar críticas ao comportamento de vários
setores da sociedade, não há nessa obra nenhuma intenção moralizante, além
daquela inerente ao próprio mote que deu origem ao enredo.
ENREDO
Inês Pereira é uma jovem sonhadora que se sente
entediada com o trabalho doméstico. Despreza Pero Marques, um pretendente rico
e grosseiro, em nome de um ideal de marido sensível, mesmo que pobre. Casa-se
com Brás da Mata, um escudeiro galante que a conquista com belas palavras,
semelhantes às das cantigas de amor.
Antes que
mais diga agora Deus vos salve, fresca rosa, e vos dê por minha esposa, por
mulher e por senhora. Que bem vejo nesse ar, nesse despejo, mui graciosa
donzela, que vós sois, minha alma aquela que eu busco e que desejo.
Mas após o casamento, ele a explora e maltrata.
Vai para a guerra no Marrocos, onde morre, depois de se revelar um covarde. Com
essa experiência, Inês percebe que a realidade funciona muito mais na base da
conveniência do que da idealização e põe em prática a máxima "mais quero
asno que me carregue do que cavalo que me derrube".
"Agora quero tomar, pera boa vida gozar,
um muito manso marido. Não no quero já sabido, pois tão caro há-de
custar."
Aceita o pedido de casamento de Pero Marques e
passa a explorar a liberdade e a dedicação que ele lhe dá, chegando a,
literalmente, carregá-la nas costas para atravessar um rio.
Anote!
Com essa peça, Gil Vicente quer mostrar que a
sociedade da época é corrupta: a experiência de Inês Pereira mostra que o mundo
é dos espertos e quem se dá bem são os mais hábeis na manipulação do contraste
entre ser e parecer, entre essência e conveniência.
PERSONAGENS
Inês
Pereira → a personagem central dessa farsa
apresenta-se de duas maneiras distintas, segundo suas experiências. Primeiro,
enquanto é solteira, gosta de se divertir, é alegre e pouco afeita aos afazeres
domésticos. Não dá importância ao luxo, preferindo uma vida prazerosa, mesmo
que pobre. Depois que se casa com o Escudeiro e descobre quem ele
realmente é – a essência por trás da aparência –, Inês se vê obrigada a
reavaliar seus ideais. O resultado dessa sua desilusão é expresso no modo como
trata Pero Marques, seu segundo marido.
Pero Marques (um Parvo) →
representa o asno servil e é a personagem cômica da peça, por seu caráter
estúpido, ingênuo e honesto. Brás da Mata (um Escudeiro) → encarna
os oportunistas, abundantes na época de Gil Vicente, e é a personificação do
contraste entre aparência e essência.
Lianor
Vaz (uma Alcoviteira) → essa personagem se diferencia das
demais alcoviteiras do teatro vicentino, na medida em que se transforma numa
confidente honesta e bem-intencionada. É uma figura com moral apreciável e bons
conhecimentos na "arte" de promover casamentos. Assim como em Pero
Marques, sua honestidade e boa fé se aliam à falta de agudeza crítica.
Mãe de
Inês → luta pela felicidade da filha iludida, mas,
tendo dado seus conselhos, deixa -a aprender por si mesma, como mostram estes
versos, logo após o casamento de Inês com o Escudeiro:
"Mãe Ficai com Deus, filha minha,
não virei cá tão asinha.
A minha bênção hajais.
Esta casa em que ficais vos
dou,
e vou-me à casinha."
Dois judeus casamenteiros (Latão e Vidal) →
aparentam uma atitude bajuladora, mas na verdade suas afirmações constituem
críticas severas e justas tanto a Inês quanto ao Escudeiro. Conhecem bem os
defeitos do pretendente que arranjaram para a moça, mas também sabem da
preguiça, da vaidade e da leviandade de Inês. Por isso, zombam dos dois,
expondo seus defeitos.
Moço → é uma
versão plebeia do próprio Escudeiro e é por ele que se conhecem os sentimentos
e as intenções de Brás da Mata. Após a partida do patrão para o Marrocos, Inês
fica aos cuidados do Moço, que a vigia o tempo todo.
Moços
e moças amigos de Inês → Fernando e Luzia são uma espécie de
ideal de vida, encarnam a bondade e a pureza, a simplicidade e a ternura.
Entretanto, é a morte e o desencanto presente em suas canções que desperta um
vago pressentimento em Inês, anunciando o futuro que a espera.
Um Ermitão → essa personagem serve
como pretexto para mostrar concretamente o "asno" transportando Inês.
Devia haver um caminho a percorrer e, como os ermitães viviam retirados, a
verossimilhança era preservada. Além disso, por se tratar de uma jornada
religiosa, o marido pode acompanhar Inês sem desconfiar de suas reais
intenções. Gil Vicente serve-se ainda dessa personagem para criticar os maus
padres de sua época, corrompidos pelos interesses materiais. Ao grupo deles
pertence o clérigo que teria assediado Lianor Vaz.
ESTRUTURA
Construída a partir do ditado "mais quero
asno que me carregue do que cavalo que me derrube", a peça incorpora em
sua estrutura a simetria existente entre os dois termos dessa comparação: Pero
Marques encarna o asno que carregará Inês, enquanto o Escudeiro é o cavalo que
a derruba. Para pôr em cena esses elementos, Gil Vicente utilizou na
caracterização de Pero Marques aspectos que o aproximam de um asno: é parvo,
teimoso, deselegante e servil. O Escudeiro, ao contrário, assemelha-se ao cavalo,
pois se apresenta como um nobre e elegante cavaleiro. Entretanto, essa
semelhança se esgota na aparência, pois quaisquer outras características que se
poderiam atribuir aos cavalos (como lealdade, generosidade, valentia) ele não
tem: é mentiroso, cínico, preguiçoso e covarde. Pode-se dizer que Lianor Vaz
reforça o grupo de Pero Marques, a considerar seus valores: não tem interesses
financeiros, é honesta, sensata e preocupada com o futuro de Inês, ao contrário
dos judeus Latão e Vidigal, que são desonestos, mentirosos, mercenários e
indiferentes ao futuro da moça. Para seguir à risca a comparação de
superioridade que subjaz ao enredo ("mais quero asno que me carregue do
que cavalo que me derrube"), é necessário mostrar que Pero Marques tem
valores autênticos, os valores medievais, enquanto Brás da Mata se move por
interesses materialistas, como os que predominam na época de Gil Vicente.
O dito popular é cumprido literalmente nessa farsa: o asno não é melhor do que
o cavalo, mas se torna preferível na medida em que não oferece perigo.
RECURSOS
LINGUÍSTICOS
a) A ironia, que é utilizada na peça
como instrumento de crítica e motivadora do riso, aparece em inúmeras formas,
ora as palavras expressando seu sentido oposto, ora jogando com o duplo
sentido, ora acentuando a desproporção entre uma ação e sua finalidade. São
exemplos de ironia nessa farsa:
"Inês - Mas eu,
mãe, são aguçosa e vós dai-vos de vaga
Ou seja, Inês tem vontade de se casar e a mãe,
que a chama de preguiçosa, é quem tem resistido em consenti-lo, dados os ideais
de marido expressos pela filha.
"Mãe - Mana,
conhecia-te ele? Lianor -Mas queria conhecer-me!"
Aqui, o
efeito cômico é construído a partir do duplo sentido do verbo conhecer: saber e
relacionar-se sexualmente.
"Mãe - Que siso,
Inês, que siso tens debaixo desses véus."
A Mãe refere-se ao juízo de Inês, ironicamente,
para reforçar a falta de juízo da filha.
"Vidal [...]
escudeiro cantador
e caçador de pardais,
sabedor, revolvedor, f
alador, gracejador
,, afoitado pela mão,
e sabe de gavião...
Tomai-o por meu amor."
Nessa fala de Vidigal, que apresenta o
pretendente a Inês, é mais uma vez explorado o duplo sentido. Se, por um lado,
o fato de ser afoitado pela mão pode ser positivo, indicando sua valentia, por
outro lado expõe sua tendência a se apropriar indevidamente do que não lhe
pertence. Se ele sabe de gavião, é porque é bom caçador ou porque é desonesto,
uma ave de rapina.
"Inês Mostrai cá, meu guarda-mor, e
veremos o que é que vem."
Aqui, a ironia de Inês Pereira se dirige ao Moço,
seu miserável carcereiro. Chamando-o de guarda-mor, tratamento que então era
dispensado aos fidalgos da Guarda Real, Inês joga com a desproporção entre a
denominação que lhe dá e a real condição do Moço.
b) Cantigas que resumem ou comentam
a ação, ou exprimem o estado de espírito de quem as canta.
"Mal herida va La
garça enamorada,
sola va y gritos dava.
A las orillas de um rio
la garça tenia el nido;
ballestero la ha herido
en el alma;
sola va y gritos dava."
Essa cantiga aparece na festa de casamento de
Inês, cantada por seus amigos. Tem a função de resumir os acontecimentos, além
de prever um futuro infeliz: a garça simboliza a própria Inês, caminhando
triste e sozinha, depois que um caçador, o Escudeiro, destruiu seus ideais.
"Inês - Quem bem tem e mal
escolhepor mal que lhe venha não s'anoje."
Essa cantiga traduz o estado de espírito de Inês
Pereira depois da desilusão com o marido que escolhera, quando tinha a
possibilidade de casar-se com Pero Marques: responsável pela opção que fizera,
agora não pode reclamar.
c) O modo de falar das personagens
é o principal recurso utilizado por Gil Vicente para representar a oposição
entre os mais elevados valores morais e os novos valores materialistas.
• A oposição entre o mundo idealizado por Inês e
a conveniência pregada pela mãe está expressa na fala de cada uma. Inês, que
apesar dos conselhos da mãe confia nos próprios ideais, utiliza palavras
ligadas à diversão ("folgar", "prazer"), enquanto a mãe
emprega um vocabulário que denota obrigação ("tarefa",
"preguiçosa").
• A fala de Pero Marques evidencia seu caráter
simplório e honesto, que é ridicularizado por Inês, ao passo que o Escudeiro,
dizendo belas palavras (mas sendo mau caráter), é privilegiado na escolha de um
marido para a moça. Ou seja, o modo de falar também serve ao jogo da aparência
versus essência.
VIDA E
OBRA DE GIL VICENTE
Não existem documentos que comprovem com
segurança o local e a data de nascimento e morte do dramaturgo português Gil
Vicente. Mas todas as evidências indicam que ele nasceu em Guimarães, em 1465,
e morreu em Évora, em 1537, onde foi sepultado no Mosteiro de São Francisco.
Teria sido ourives de dona Leonor, a Rainha Velha, e pelos seus conhecimentos
teológicos e filosóficos é provável que tenha recebido formação intelectual,
apesar da origem popular (ou burguesa: também não se sabe ao certo a que classe
social pertencia). Como organizador oficial dos festejos da Corte, Gil Vicente
desfrutava de um prestígio que fazia dele mais do que um mero bobo-da-corte. E,
aproveitando esse prestígio, utilizou seu teatro para atacar os vícios de todas
as classes sociais, incluindo as pessoas do rei e do papa. O escritor
presenciou e documentou as profundas transformações que o Renascimento e a
expansão ultramarina trouxeram ao Portugal de sua época. Por isso é considerado
o grande repórter do século XVI. Casou-se duas vezes, primeiro com Branca
Bezerra e depois com Melícia Rodrigues. Dos dois casamentos, Gil Vicente teve
cinco filhos, dois dos quais, Paula Vicente e Luís Vicente, fizeram em 1562 a
compilação de todas as obras do pai. Em 34 anos de trabalho, escreveu 47 obras,
entre as quais estão o Monólogo do Vaqueiro ou Auto da
Visitação (1502), apresentado por ocasião do nascimento de d. João
III, Auto da Índia (1509), O Velho e a
Horta (1512), Quem Tem Farelos? (1515), Auto da Barca do
Inferno (1517), Auto da Alma (1518), Farsa de Inês Pereira (1523)
e Auto da Lusitânia (1532).
Atividades relacionadas
Farsa de
Inês Pereira, de Gil Vicente
1. (UNIFESP)
Para responder à questão, leia os versos seguintes, da famosa Farsa de Inês Pereira, escrita
por Gil Vicente:
Andar!
Pero Marques seja!
Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.
Meu desejo eu retempero:
asno que me leve quero,
não cavalo valentão:
antes lebre que leão,
antes lavrador que Nero.
Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.
Meu desejo eu retempero:
asno que me leve quero,
não cavalo valentão:
antes lebre que leão,
antes lavrador que Nero.
Sobre a Farsa de Inês Pereira, é correto afirmar que é
um texto de natureza:
(A) satírica, pertencente ao Humanismo português,
em que se ridiculariza a ascensão social de Inês Pereira por meio de um
casamento de conveniências.
(B) didático-moralizante, do Barroco português, no qual as contradições humanas entre a vida terrena e a espiritual são apresentadas a partir dos casamentos complicados de Inês Pereira.
(C) religiosa, pertencente ao Renascimento português, no qual se delineia o papel moralizante, com vistas à transformação do homem, a partir das situações embaraçosas vividas por Inês Pereira.
(D) reformadora, do Renascimento português, com forte apelo religioso, pois se apresenta a religião como forma de orientar e salvar as pessoas pecadoras.
(E) cômica, pertencente ao Humanismo português, no qual Gil Vicente, de forma sutil e irônica, critica a sociedade mercantil emergente, que prioriza os valores essencialmente materialistas.
(B) didático-moralizante, do Barroco português, no qual as contradições humanas entre a vida terrena e a espiritual são apresentadas a partir dos casamentos complicados de Inês Pereira.
(C) religiosa, pertencente ao Renascimento português, no qual se delineia o papel moralizante, com vistas à transformação do homem, a partir das situações embaraçosas vividas por Inês Pereira.
(D) reformadora, do Renascimento português, com forte apelo religioso, pois se apresenta a religião como forma de orientar e salvar as pessoas pecadoras.
(E) cômica, pertencente ao Humanismo português, no qual Gil Vicente, de forma sutil e irônica, critica a sociedade mercantil emergente, que prioriza os valores essencialmente materialistas.
2. (PUC-SP) O argumento da peça A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, consiste na demonstração do refrão popular “Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”. Identifique a alternativa que não corresponde ao provérbio, na construção da farsa:
(A) A segunda parte do provérbio ilustra a
experiência desastrosa do primeiro casamento.
(B) O escudeiro Brás da Mata corresponde ao cavalo,animal nobre, que a derruba.
(C) O segundo casamento exemplifica o primeiro termo, asno que a carrega.
(D) O asno corresponde a Pero Marques, primeiro pretendente e segundo marido de Inês.
(E) Cavalo e asno identificam a mesma personagem em diferentes momentos de sua vida conjugal
(B) O escudeiro Brás da Mata corresponde ao cavalo,animal nobre, que a derruba.
(C) O segundo casamento exemplifica o primeiro termo, asno que a carrega.
(D) O asno corresponde a Pero Marques, primeiro pretendente e segundo marido de Inês.
(E) Cavalo e asno identificam a mesma personagem em diferentes momentos de sua vida conjugal
3-
(Fuvest-SP) Na Farsa de Inês Pereira, Gil Vicente:
a) Retoma a
análise do amor do velho apaixonado, desenvolvida em O velho da horta.
b) Mostra a
humilhação da jovem que não pode escolher seu marido, tema de várias peças
desse autor.
c) Denuncia
a revolta da jovem confinada aos serviços domésticos, o que confere atualidade
à obra.
d) Conta a
história de uma jovem que assassina o marido para se livrar dos maus-tratos.
e) Aponta, quando
Lianor narra as ações do clérigo, uma solução religiosa para a decadência moral
de seu tempo.
4- (UM-SP) Leia as três
afirmações abaixo a respeito da Farsa de Inês Pereira.
I- Pode ser colocada
como representante do teatro de costumes vicentino.
II- Encaixa-se na
tradição da farsa medieval sobre o adultério feminino desenvolvida por Gil
Vicente.
III- Inês Pereira é uma
moça que vive na vila e pretende subir de condição.
a) Todas estão corretas. b) Todas estão incorretas. c) Apenas a
I e a I estão corretas. d) Apenas a I e a I estão corretas. e) Apenas a I e a II estão
corretas.
5- (Fuvest-SP) Aponte a alternativa correta
em relação a Gil Vicente:
a) Compôs peças de caráter sacro e satírico.
b) Introduziu a lírica trovadoresca em
Portugal.
c) Escreveu a novela trovadoresca Amadis de
Gaula.
d) Só
escreveu peças em português.
e) Representa o melhor do teatro clássico
português.
6- (UNESP) Vem o Anjo Custódio com a Alma e
diz:
Alma humana formada De nenhuma cousa, feita Mui
preciosa, De corrupção separada, E esmaltada Naquella frágoa perfeita Gloriosa;
Planta neste valle posta Pera dar celestes flores Olorosas, E pera serdes
tresposta Em a alta costa Onde se crião primores Mais que rosas; Planta sois e
caminheira, Que ainda que estais, vos is Donde viestes. Vossa pátria verdadeira
He ser verdadeira Da glória que conseguis: Andae prestes”.
O
texto acima transcrito pertence ao autor teatral
de maior destaque na literatura portuguesa.
Pelo próprio texto se pode identificar a época em que foi escrito.
Assim, assinale, em uma das alternativas, a relação época-autor a que o texto
pertence:
a)
teatro medieval – Gil Vicente b) teatro clássico – Luís de Camões c) teatro
romântico – Almeida Garret d) teatro naturalista – Teixeira de Queirós e) teatro moderno –
Almada Negreiros
7-
(UNIP) Seu teatro caracteriza-se, antes de tudo, por ser primitivo, rudimentar
e popular, muito embora tenha surgido e se tenha desenvolvido no ambiente da Corte,
para servir de entretenimento nos animados serões oferecidos pelo Rei. Entre
suas obras destacam-se Monólogo do Vaqueiro, Floresta de enganos, O velho da horta,
Quem tem farelos? . Trata-se de:
a) Martins Pena b) José de Alencar c) Gil
Vicente d) Artur de Azevedo e) Sá de Miranda
8) O teatro , de suas
origens até o séc.XIX, se serve do verso como forma de expressão. Fiel á
tradição , Gil Vicente fez uso das métricas mais utilizadas na poesia medieval.
Classifique o tipo de verso empregado em A Farsa de Inês Pereira.
9) O teatro vicentino é
uma sátira à sociedade portuguesa. Para fazer essa sátira , ele se serve de
tipos sociais bem definidos, caracterizados não só pela visão de mundo peculiar
de cada um mas também pelas particularidades de sua linguagem .
Comprove os dados
contidos nessa afirmação, realizando as propostas a seguir:
a) Faça um levantamento
dos provérbios contidos nas falas da mãe de Inês Pereira. Compare a linguagem da mãe à de Inês
Pereira e verifique que diferença há entre elas.
b) Um dos tipos sociais observados
com mais realismo por Gil Vicente é a “moça da vila”, isto é, a moça que vive
na vila, fora da corte, num aglomerado
urbano: ela pretende subir de condição social e, para isso , almeja casar-se
com um escudeiro. Na farsa em estudo, Inês pereira representa a moça da vila .
Caracterize-a.
c) Por meio das personagens Latão e Vidal,
indique o papel desempenhado pelos judeus
nessa sociedade.
d) Por meio da
personagem Lianor Vaz, indique o papel desempenhado pela alcoviteira nessa
sociedade.
e) Brás da Mata, o
escudeiro, representa a nobreza decadente na Baixa Idade Média . Retire do
texto elementos que comprovem essa afirmação.
10) Indique os costumes
da época vicentina observados na Farsa de Inês Pereira em relação: à sedução,
ao pagamento de serviços, À EDUCAÇÃO DOMÉSTICA.
11) Na Farsa de Inês Pereira, o escudeiro morre
no momento em Pero Marques herda a fortuna do pai. A simultaneidade desses
acontecimentos mostra que o nobre é substituído pelo tolo que possui dinheiro.
O que isso significa no contexto das transformações históricas no início do
séc.XVI?
12) A Farsa de Inês
Pereira é uma peça picante que diverte moralizando. Qual é sua moralidade?
Fonte:
CEREJA, W.R.;
MAGALHÃES, T.C. PORTUGUÊS: LINGUAGENS: literatura,produção
de texto r gramática, vol.I. 3ªed.São Paulo:Atual,1999
Questões:
A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente. Disponível em http://www.passeiweb.com/preparacao/banco_de_questoes/portugues/a_farsa_de_ines_pereira
Literatura Humanismo disponível em <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAfWiUAI/literatura-aula-02-humanismo?>
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ATIVIDADES
Escrita em 1523 em resposta a um desafio,
a Farsa de Inês Pereira é a peça mais bem-acabada de Gil Vicente,
dramaturgo que inaugurou o teatro português. Construída a partir de um dito
popular, a peça testemunha o conflito de valores que caracterizou o humanismo
em Portugal.
Leia-a e responda às questões propostas.
Leia-a e responda às questões propostas.
A FARSA DE INÊS PEREIRA ( MODERNIZADA)
Roteiro Original: Gil Vicente Adaptação / Versão: André Gonçalves dos Santos
PERSONAGENS:
Inês Pereira:
Principal personagem da peça. Moça bonita, solteira, pequena burguesa. Seu cotidiano é enfadonho: passa os dias bordando, fiando, costurando. Sonha casar-se, vendo no casamento uma libertação dos trabalhos domésticos. Despreza o casamento com um homem simples, preferindo um marido de comportamento refinado. Idealiza-o como um fino cavalheiro que soubesse cantar e dançar. Contraria as recomendações maternas rejeitando Pero Marques e casando-se com Brás da Mata, frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser boa ao lado de um humilde camponês.
Inês deixa-se levar pelas aparências e ridiculariza Pero Marques despedindo-o de sua casa para receber Brás da Mata. Casa-se com ele, mas sua vida torna-se uma prisão, ela não pode sair e é constantemente vigiada por um moço. Inês sofre e chega a desejar a morte do marido.
Ele morre covardemente na guerra e Inês casa-se com Pero Marques. Ele satisfaz todos os seus desejos e chega até a carregá-la nas costas para um encontro com um amante (sem saber, porém, que era para isso).
Pero Marques:
Camponês simples, não conhece os costumes das pessoas da cidade. É uma personagem ambígua, ao mesmo tempo que é ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela integridade de caráter. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso marido.
É tão simples que não sabe para que serve uma cadeira. É teimoso como um asno e diz que não se casará até que Inês o aceite um dia.
Brás da Mata:
Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes superiores. É um nobre empobrecido que não perde o orgulho e pretende aproveitar-se economicamente de Inês através do dote. Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a maioria permaneceu numa condição subalterna, procurando imitar a aristocracia.
Mãe:
É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Preocupada com a educação e o futuro da filha em idade de casar. Dá conselhos prudentes, inspirada por uma sabedoria popular imemorial. Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias.
Lianor Vaz:
É o estereótipo da comadre casamenteira que sabe seu ofício e dele se desincumbe com desenvoltura. Sabe valorizar seu produto com argumentos práticos de quem tem a experiência e o senso das coisas da vida:
Latão e Vidal:
Os judeus casamenteiros são muito parecidos, têm as mesmas características, na verdade são o mesmo repartido em dois. São a caricatura do judeu hábil no comércio. Faladores, insinuantes, humildes, serviçais e maliciosos, são o estereótipo de que a literatura às vezes se serviu, como, por exemplo, no caso desta peça de Gil Vicente.
Moço:
Pobre coitado, explorado por um amo infame. Humilde, deixa-se explorar e acredita ingenuamente nas promessas do Escudeiro. Cumpre sua obrigação sem ver recompensa, mas é capaz de, em suas queixas, insinuar as farpas com que cutuca o mau patrão.
Ermitão:
É um falso monge que veste o hábito para conseguir realizar seu propósito de possuir Inês.
Inês é filha de uma mulher simplória. Muito fantasiosa, finge que trabalha em casa. Sua mãe foi à missa. A jovem entra cantando esta cantiga:
Inês (canta): Vida de Inês é difícil... É difícil ser Inês...
Inês: (fala) Não quero trabalhar
Nem curto quem o inventou!
Dou de presente pro demo
De tão chato é que realizar!
Meu Jesus! Que sofrimento,
E que raiva, e que encheção de...
Coitada, assim vou ficar
Acabada nesta casa
Como... como... uma panela sem asas
Que não pode sair do lugar!
Vou ficar presa para sempre
Nas tarefas que me rodeiam?
Já tenho a vida... cansada
De ficar sempre na mesma.
Todos estão numa boa, e eu... não;
Todas meninas da minha idade vêm e... vão
Onde querem, e eu não posso.
Desgraça! Que pecado eu cometi?
Sou eu uma braçadeira ou maçaneta
Ou sou um cachorro de madame
Que não pode passar da porta para fora?
E quando posso, um dia sequer
Olhar pela janela,
Sinto-me mais que uma Maria Madalena
Quando viu o Cristo... ressuscitado.
Vem a mãe da igreja, e não a achando trabalhando, diz:
Mãe: Ah! Logo eu imaginei
Na igreja onde eu rezava,
Como a minha Inês... da casa cuidava
A fácil tarefa que deixei...
Menina! Anda rápido com isso!
Ué! Nasceu-te alguma unha encravada?
Inês: Rogo a Deus que algum milagre
Tire-me do cativeiro.
Mãe: Você se mostra tão... feliz!
O que está acontecendo?
Inês: Bem... É que não existe mais motivo
De eu ficar para titia. Já tenho 13 anos!
Mãe: Mas como quer um marido
Com essa fama de preguiçosa?
Inês: Mas eu, mamãe, sou esperta e ativa
E você... é muito lenta, calma.
Mãe: Espera, vamos ver!
Inês: Já conheço o fim do seu filme!
Mãe: Olha o respeito! Não se esqueça
Que “o tempo de Deus é diferente do tempo dos homens”.
Quando menos esperar,
Virão maridos aos montes
E filhos como consequência.
Inês: Não vejo a hora!
Fico melhor falando disso
melhor do que uma vassoura na mão.
Não nasci para isso...
Mãe: Ali vem Lianor Vaz.
Inês: E ela vem se... benzendo...!
Entra Lianor Vaz, com um leque nas mãos aliviando seu colo... E se benzendo!
Lianor: Meu Jesus! Me salve do pecado!
Mãe: Lianor Vaz, o que se passa?
Lianor: Olhem! Estou... pálida?
Mãe: Mais vermelha que um morango maduro!
Lianor: Deus meu, Jesus meu, o que farei?
Pobre de mim,
Nunca passei tamanha... vergonha!
Mãe: Como é? O que de tão ruim aconteceu?
Lianor: Ruim? Ruim é pouco! Eu vou lhes dizer:
Vinha agora pelo beco da rua detrás
Como costumo fazer,
E um frade, amiga,
Por Deus, que vergonha, entrou na minha frente.
Não pude me defender.
Diz que queria saber, imaginem,
Como era por baixo do meu vestido! Queria levantá-lo!
Mãe: Ai! Seria algum rapaz
Que brincava por prazer?
Lianor: Rapaz? Rapaz em... excesso, seria!
Era um senhor rapaz! Braços grandes... pernas grossas...
Eu vinha feliz, inocente,
Fiquei tão... excitada, digo, assustada.
Quando ele chegou bem... ai... perto de mim,
Que senti aquele... calor, houve uma... luta de interesses, ai:
– Deus deixa passar, não é mal! – É... não é... É mal, sim!
– Ninguém está vendo... Um pouquinho! – Sou mulher direita, não!
Deus meu! Homem! Que tem você, servo de Deus?
– Irmã, vou mostrar o gostinho do prazer... Não sabe como é bom!
– Que caminho...? Isso é... pecado!
Dispenso... Eu não... quero! Vá embora...
Quando viu que não ia ter o que ele queria,
Foi e rasgou um pedaço do meu vestido, olha!
Mãe: Oh! Um futuro homem de Deus, fazendo uma coisa dessas!
Esse mundo está perdido! O futuro será de que?
Ninguém é de ninguém?!
Lianor: Eu fiquei... desconcertada... com... aquilo!
Não sabia o que... fazer...
Ele, olhando para mim...
Deu-me uma vontade de gargalhar,
E, de repente, o jovem... sumiu!
E eu ainda me lembro
Das coisas que me dizia:
Chamava-me: “luz do dia”
Mas logo o diabo me deu
Cócegas e vontade de rir,
E paralisou-me para fugir,
Mas fraca para não... vencer.
Porém, tive... sorte,
E ninguém pra me... socorrer...
Ai! O Diabo, e não pode ser... outro
Parece ter tomado conta do corpo do noviço!
Mãe: Céus, Lianor! Conhecia o frade?
Lianor: Não! Mas... queria conhecer, viu?!
Mãe: Meu senhor!
Lianor: Eu vou reclamar ao Cardeal,
Vou me confessar
E contar o acontecido
Isso não ficará assim, não!
Preciso saber... onde anda o jovem...!
Mas, de que adianta?
E mais, por que faria isso?
Se, no meio da cruzada
Veio um homem em sua mula
Ao vê-lo, estava no... Paraíso!
Mas, para ser sincera,
Ai... Estava cansada.
Nada valia orar,
Nem adiantava gritar:
– “Reinaldo Gianecchini
Salva-me do pecado!”
Porque em mim daria uma... vontade de... tentar pecar!
Lianor Fica quieta, Lianor Vaz,
(sozinha): Que Deus te faça uma Santa.
Um nó dê nessa garganta!
O que podia eu, fraca, fazer?
Sou senhora de respeito, casada!
Mãe: Devia ter dado uma lição, um tapa
Lianor: Como? Seria excomungada!
Não dei um jeito,
Porque sou tão... religiosa e... inocente
Sentimento de nobres... Que calor!
E isso encerra meu... infeliz episódio!
Deixemos isso! Eu venho
Tratar de outros assuntos.
Inês está prometida
Para casar-se com alguém?
Mãe: Que nada! Até agora com ninguém
Lianor: Em nome de Santo Antonio,
Eu tenho a ela um matrimônio.
Inês: Mas, para quando, Senhora?
Lianor: Já tenho cá uma resposta.
Inês: Sim! Mas não hei de casar
Senão com um homem esperto
Ainda que pobre e pelado
Que assim eu tenho imaginado.
Lianor: Sim! Eu trago um bom marido,
Rico, honrado, influente
Disse que, mesmo vocês sendo pobres, a quer.
Inês: Primeiro, quero saber do individuo
Se burro, se sabido.
Lianor: Nesta carta, que aqui vem
Para você, filha, de estimas,
Verão vocês, queridas,
O jeito que ele tem.
Inês: Por Deus, mostre a carta! Quero ler!
Lianor: Aqui. Mas, você sabe ler?
Mãe: Com toda a certeza de Deus! Inês sabe latim,
E gramática, e contar até o infinito
Inês Pereira lê a carta, a qual assim diz:
Inês: “Senhora Inês Pereira, amiga minha,
Pero Marques, vosso amigo,
Venho a dizer nestas linhas,
Digo desde agora que podes contar comigo
E mais o digo,
Digo que a abençoe, Deus,
Que a fez de tão fino jeito;
Bom prazer e bom proveito
E sem nenhum defeito
E de mim também assim,
Ainda que eu a vi, pobre de mim,
Com outro dia de pesar,
Porque não quisestes dançar
Nem cantar diante a mim...”
Senhora Lianor Vaz, este é... ele?
Lianor: Menina! Leia a carta sem parar,
Uma bela surpresa poderá ter.
Inês: “... Nem cantar diante a mim.
Só Deus sabe a raiva
Que me deixara no meu sofrido coração.
Ora, Inês, que aconteça uma benção
De seu pai e minha,
Que aconteça assim a conclusão.
E rogo a você como amiga.
Que permita, sem hesitar,
Que nos falemos em particular.
Antes que outros a sua mão peça,
E, se gostar de mim aconteça,
Esteja sua estimada mãe na presença,
A senhora Lianor Vaz de presente
Veremos se a Senhora, amiga Inês, está contente
E queira a minha pessoa ter ao seu lado para sempre” .
Inês senta-se na cadeira, assustada. Lianor Vaz e sua mãe vão até ela.
Inês: Desde que nasci até agora
Nunca vi um rapaz como este,
Tão... sem-jeito, desastrado,
Nem no Oeste, nem ao Leste!
Lianor: Não queira ser tão exigente.
Casa, filha, nem pense,
Não perca a oportunidade.
Quer casar com muita escolha
No tempo em que vivemos, Inês?
Melhor casar a contragosto,
Aproveita que apareceu um bom esposo.
O bom é estar casada.
A vida de uma mulher é essa.
Mãe: Por Deus, amiga, mas é assim mesmo!
“Mata o cavalo de sela
E bom é o asno que me leva.”
Lianor: Devo avisá-lo que venha, Inês?
Inês pensa...
Inês: Pois sim!
Que venha e veja a mim.
Quero ver quando me vir,
Se vai perder o entender, a consciência
Logo chegando aqui,
Para me fazer rir.
Mãe: Terá que se preparar bem para recebê-lo, caso venha,
Pois para o futuro casamento o encontro atenda.
Inês: Hum... Não sei, mas cá estou eu o imaginando...
Sabe, mãe, que eu sou uma profetisa?
Sinto no chão que a gente pisa...
As ferraduras em seus pés, o cheiro de esterco em sua camisa.
Aparece Pero Marques.
Pero: Não sei onde mora aqui...
Imagino tanto que esqueço de mim!
Esta porta é a sua.
Já conheço que é aqui.
Chega Pero Marques onde elas estão, e diz, tremendo:
Pero: Desculpem a mim pela imensa... demora.
Eu escrevi... de onde vim
Uma bela cartinha...
Mãe: Tenha calma e sente-se aquela cadeira.
Pero: Que bichinha formosa essa cadeira!
Inês (sozinha): Jesus meu! Que paspalhão?!
Todo desalinhado,
Nervoso e cansado.
Assentou-se abraçando a cadeira e de costas para elas, e diz:
Pero: Eu acho... Eu acho que não estou bem...
Mãe: Qual o seu nome, meu jovem?
Pero: Sou Pero Marques, a sua benção,
Como meu pai, que Deus tenha ao seu lado.
Faleceu o coitado.
E sou eu seu herdeiro.
E isso é o meu... maór gadu.
Mãe: Gado?! De quanto gado está você falando?
Pero: Mas gado eu tenho muito,
E o maior de todo o gado,
Digo... maior algum tanto.
E-eu desejo ser... casado,
Quisera o nosso Espírito Santo,
Com Inês, que eu me espanto
Quem me fez ser pretendente.
Parece moça de porte e de bem,
Não será de agrado melhor alguém,
Estão assustadas pelo que estou vendo.
Notem que eu trago comigo
Uma Pêra de presente
Aguarde um momento, minha Inês.
Inês: Que grande coisa há de me oferecer...
Pero Marques vai retirando uma série de coisas do seu capuz...
Pero: Deixo as cordas no chão.
Inês: Três chocalhos e um novelo,
E as... pêras...
Mas onde as pêras... foram parar?
Pero: Nunca tal mal me aconteceu!
Alguém a elas comeu...!
Porque as duas, deixei aqui
Mas a ferradura não se perdeu.
Pois trazia as pêras...
Inês: Fresco vinha o presente,
Que cheirinho... agradável!
Pero: Elas vinham metidas
Aqui, bem no fundo, no mais... quente.
Sua mãe... foi-se? Bem...
Ela nos deixou a sós, aqui?
Nossa! Preciso sair correndo daqui,
E não diga a ninguém que fiz a ti algo ruim...
Inês: E você, o que há de fazer,
Nem ninguém há o que dizer
(sozinha) Ó galante atrevido... Que bobalhão! Ai de mim!
Como enganado ele deve estar!
Dá até pena! Dá vontade até de chorar
Suas pretendentes ficaram sem vontade de casar,
Pero: Sua mãe não voltará?
Inês: Ela volta...
Pero: Muito bem senhora, devo partir
Antes que caia a noite.
Virá aqui a senhora Lianor Vaz,
Veremos o que vai você responder...
Inês: Como você é insistente!
Não sei se quero, se me interessa.
Deveria procurar uma noiva... em outro continente!
Pero: Muito bem! Não incomodarei mais,
Ainda que te seja de repente.
Prometo com outra não casar
Até que a senhora não me queira mais.
Pero sai, dizendo:
(a si mesmo) É! Assim são as mulheres!
Anda um homem a gastar sapato
Apressa-se a usar uma linguagem agradável,
Subitamente... zombam de nós! Essas mulheres!
(Para Inês): Eu vou a outra cidade, daqui afastada!
Senhora, assim ficamos?
Inês: Olha se não se esqueceu... de nada...
Pero: Ainda não tem uma vela acesa?
Suponhamos que alguém
Venha como eu vim agora,
E acha você sozinha, nesta hora
Parece que é certo?
Fica, minha senhora, com Deus:
Tranca bem a porta
Segurando a sua velhinha
E quem sabe você será pra sempre minha:
Então, espero que logo nos veremos...
Pero Marques vai embora e diz Inês Pereira:
Inês: Velhinha?! Mal conhece o diminutivo das palavras!
Que pessoa eu conheço
Agiria de outro modo...?
Casaria com um tolinho,
Aparecesse outro homem, agora,
E diante de mim na hora,
Estando, assim, às escuras,
Falaria a mim mil doçuras,
Ainda que mais...
Vem a mãe, dizendo:
Mãe: Pero Marques já foi embora?
Inês: E porque ficaria mais aqui?
Mãe: Não te agradou?
Inês: Que suma de uma vez!
Pode ser homem mal feito,
Feio, pobre... sem descrição,
Que saiba tocar viola,
Mesmo que eu passe de água e pão.
Saiba, ao menos, uma cantiga de escola!
Sendo de bom coração,
Porque é isso o que me importa.
Mãe: Então sempre você vai dançar,
E sempre ele vai musicar?
Se não tiver o que comer,
A música vai sua barriga sustentar?
Inês: “Cada um vive a sua maneira”. Diria algum sabichão!
Como disse, tendo com pedaço de pão
E na outra mão, um copo de água fria,
Posso dar cabo de cada dia.
Mãe: Como isso queimam minhas orelhas!
E quem são esses cavalheiros que ali vêm?
Inês: Eu falei ontem
Que passaram por aqui
Os Judeus casamenteiros
Aqui aparecem os Judeus casamenteiros, chamados: Latão e Vidal.
Um deles, Latão, diz:
Latão: Ô de casa!
Inês: Quem é?
Vidal: Em nome de Deus, aqui nós dois estamos!
Latão: Não sabem o quanto andamos.
Vidal: Passamos por tempos difíceis.
Ele e eu.
Latão: Eu, e ele...
Vidal: Pela lama e pelo pó
Que era de dar dó,
Com chuva, sol e seca das bravas.
Foi de tal maneira,
Tal fritura e tal canseira,
Passei por... uma... caganeira!
Para a senhora ver
O que nos pediu.
Latão: O que nos pediu
Será como deve ser.
Procuramos muito!
Vidal: E logo conseguimos...
Latão: Cale-se!
Vidal: Não quer que eu diga?
Não sou eu também seu... parceiro?
Latão: Eu também não tava com você?
Você e eu não somos... eu?
Você judeu e eu... judeu,
Não somos unha da mesma carne?
Vidal: Sim, somos.
Latão: Deixa eu falar!
Vidal: Certo!
Senhora, passaram três dias....
Latão: Mas fala você ou eu falo?
Diz logo o que tem que dizer:
Que foi, que fomos, que foram
Buscá-lo, conhecê-lo melhor
Vidal: Você, menina, quer um marido
Discreto, e de... viola, isso?
Latão: Esta moça não é... boba,
Porque quer casar com bom-senso...
Vidal: Judeu, quer me deixar falar?
Latão: Claro! Não quero... falar.
Vidal: Fomos atrás dele...
Latão: Foi difícil!
Creio que a nossa vontade
Um dia congelará o fogo do Inferno.
Digo quando devo... calar.
Calo a mim agora ou não?
Ou falo, antes levantando a mão?
Inês: Deus! Jesus e todos os Santos!
Não falará nenhum de vocês?
Haja paciência! Nessas horas, esqueço os modos!
Mãe: Que educação...
Nem parece minha filha!
Inês: Diz o exemplo da velha:
“o que não quer comer
deixe para outros mexer”.
Mãe: Deus meu! Não sei quem te aconselha...
Inês: Enfim, que novidade vocês trazem?
Vidal: O marido que você quer,
De viola e dessa sorte,
Não existe senão na corte
Que por aqui não vai achar.
Falamos com Badajuz,
Músico, íntegro, solteiro;
Este seria o seu seresteiro,
Mas fugiu como o Diabo da cruz!
Fomos atrás de Leandro Gulim
Que disse perto de mim:
– “Voltem daqui uma hora,
trazendo consigo a falada senhora.”
Inês: Não conseguiram nada? Quanta competência!
Vidal: Espera, tenha paciência!
Nós soubemos de um escudeiro,
Que virá sem resistência
Que bem fala... E como fala!
Estremecerá a voz dele essa sala.
Ah! E toca violão... como toca.
Aos céus sua música se desloca,
E se julga muito galante.
Vem o escudeiro com seu Moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando com ele mesmo:
Escudeiro: Se a tal senhora é tanto
Como os judeus a descreveram,
De certo os anjos a pintaram,
E de outro modo não pode ser entretanto.
Diz que os olhos com que via
Moça de vila será ela,
Uma bela donzela.
Assim que chegar,
Muito bem vou observar
Se é formosa, se honesta,
Porque o melhor da festa
É ver a verdade, enfim, se revelar.
Mãe (falando para Inês):
Mãe: Se este tal escudeiro há mesmo de vir
Tem que passar boa impressão,
Falar pouco, e não rir.
E mais, Inês, não muito olhar
Sem se mexer você deve ficar,
Mais que te julguem muda
Porque a moça calada
É a jóia mais querida.
Escudeiro (falando para o criado):
Escudeiro: Olha aqui! Eu vou
Conhecer com quem vou casar.
Aviso a você que onde estaremos
Calado tem que ficar.
Moço (sozinho): Como na frente de um Rei! Ai de mim!
Muito bem vai isso assim...
Escudeiro: E se eu a ti olhar, com estranheza,
Ajoelha no chão e faz reverência!
Moço (sozinho): Quanta demência!
Escudeiro: E se me vir mentir,
Elogiando-me com excesso,
Ou fica quieto para eu ter sucesso
Ou sai fora da casa, para rir!
Faça isso por amor... a mim.
Moço: Porém, senhor, a dizer me atrevo,
Os calçados que nos pés tenho
Pode por o plano em fracasso por inteiro.
Escudeiro: Que faço, se o sapateiro... O sujeito
Não tem solas, nem tem pele? Que jeito?
Moço: Sapatos, poderia ele dar,
Caso dinheiro o senhor pudesse me pagar...
Escudeiro: Eu o conseguirei logo.
E mais, roupas novas, prometo.
Moço (sozinho): Esse homem não tem respeito,
Coitada dessa senhora!
Chega o escudeiro onde está Inês Pereira, e todos se levantam, fazem suas honrarias. Diz logo o Escudeiro:
Escudeiro: Antes que eu me diga demais,
Deus te Salve, rosa que aqui jaz,
E que permita ser minha, aliás,
Pelo compromisso firmado atrás.
Bem eu vejo,
Nesse ar, nessa graça, nesse despejo,
Minha graciosa donzela,
Que você é, minha metade da laranja, aquela
Que eu sempre busco e desejo.
Fez bem a Natureza
Em presenteá-la com tal condição
Parece manter a discrição
E não ligar para a riqueza.
De nada me muito... importa
Se... sem dote... não tiver, se está é a condição.
Seria eu, um... calhorda
De não obedecer... meu... pobre coração!
Latão: Como fala!
Vidal: E a moça, só se cala!
Concentra-se pelo ouvido...
Latão: Tenho em mim que este será o marido
Como a situação se abala.
Escudeiro: Eu não tenho muito de meu,
O Marechal é o meu senhor
E criado, escudeiro seu.
Sei ler
Exímio em escrever,
E na parte de tocar viola,
Sou muito bom, logo irá perceber.
Moço, que está fazendo?
Moço: Que manda o senhor...
Escudeiro: Venha aqui, já!
Moço: Por que faria?
Escudeiro: Por quê? Para seguir as minhas ordens, lembra?
Moço: Ah, sim! Logo vou...
Moço (sozinho): O diabo uma prenda em mim pregou:
Tirar-me um homem de bem, colocar este outro
E me colocar a este que nada de útil tem, um frouxo
Escudeiro: Fui dispensar um rapaz
Que me valia como ouro,
Para contratar este tolo...
Moço!
Moço: Meu... senhor?
Escudeiro: O que, moço? Traga a minha viola!
Moço (sozinho): Coitada dessa senhora,
Não será nada sábia
Se ele for sua escolha,
Ficará perdida!
Moço (ao Escudeiro): Aqui está, bem afinada:
Nem precisa o senhor se preocupar.
Escudeiro: Faria bem dela a você eu acertar
Na cabeça, em uma só cacetada!
Moço (sozinho): Sei bem que é emprestada,
Quem poderia ao dono uma nova pagar?
Moço (ao Escudeiro): Meu amo, vou embora, partir!
Escudeiro: Por quê?
Moço: Assim não têm como seguir
O senhor não dá a mim condições de bem servir!
Escudeiro: Não dorme bem?
Moço: No chão... E o telhado com goteiras.
E chega a coçar a garganta
Porque a fome é tanta...
Escudeiro: Vejam os detalhes dessa viola...
Moço: Não me dá atenção! Não vejo outra escolha!
Escudeiro: Que boas cordas! Pertence-se... a mim
Esta viola! Vejam isso!
Deixa eu resolver tudo aqui,
Depois cuido disso!
Mãe: Agora devo dizer um presságio meu
Certamente, minha filha, entrará no... Paraíso.
Inês: E daí?
Todo o problema é meu!
Mãe: Quanta... delicadeza!
Inês: Como é chata a... demência!
Não casar com ignorância!
Pode haver maior riqueza
Do que um homem melhor preparado?
Mãe: Deus meu! Que pecado!
Ele, um homem... assim?! Que tristeza!
Latão: Já ouvi, e Inês ouvirá;
Escudeiro, cantará;
Uma canção muito bela
Encante sua jovem donzela,
Esta música você tocará.
Canta o Judeu
Latão: Choram as rosas,
Porque não quer estar aqui.
Sem seu perfume
Porque já sei que te perdi...
E entre outras coisas... eu choro por ti!
Canta o Escudeiro o romance de “Mal me quieren em Castilha” (Choram as rosas, de Bruno e Marrone ^^), e diz Vidal:
Vidal: Latão, toma o sono conta de mim
Música tão parada assim
Que não sai disso, não é comigo!
Latão: O mesmo eu te digo!
Ouviste o sábio cantar:
“To ficando atoladinha, to ficando atoladinha!
Calma, calma! Foguentinha!”
Vidal: Moça Inês, deu para perceber,
Não deixe a grande oportunidade desaparecer.
Escudeiro, músico,
Das coisas, conhecedor,
Galante, ao seu dispor.
Aceite-o, para seu amor!
Poderá encontrar um medroso, inexperiente,
Violento, piolhento.
De tudo o que eu disse, com desgosto,
Este escudeiro, com muito a meu gosto,
É o oposto!
Mãe: Quero rir, com toda a tristeza,
Destes seus casamenteiros
Dois sem-vergonha, trambiqueiros.
Manipulam tão bem uma situação dessas.
Presta a atenção! Um bom oficial
Que a você ganhe nessa desgraça
Um escravo de graça?
Casará com um pobre a você... igual.
Latão: Senhora, cale-se! Cuidado:
O que vai ser, vai ser,
E ninguém poderá conter
O que por Deus foi determinado.
Vidal: E assim algum anjo passe e abençoa!
Mãe: Inês! Fuja dessa situação! Como pode ser tão tola?!
Escudeiro sem posses você quer?
Inês: Em nome de todos os Santos juntos,
Chega de se meter tanto nos meus assuntos!
Você, minha mãe adivinha,
Conseguiu por sua vaidade
Casar à sua vontade;
Oras! Quero também casar à minha.
Mãe: Então casa, filha! Você quem sabe!
Escudeiro: Dê essa mão, minha senhora. É a sua vontade?!
Inês: Entrega a você de muito bom grado, não é mesmo?
Escudeiro: Muito bem!
Recebo você, quem olhar além!
Em nome de Deus, assim seja!
Eu, Brás da Mata, escudeiro,
Aceito sua mão, Inês Pereira,
Por esposa e por parceira
Como dita a Santa Igreja.
Inês: Eu aqui, diante de Deus,
Inês Pereira, aceito você,
Brás... da Mata...? Esse é o seu... nome?
Como a santa Igreja dita e manda.
Latão: Assim por Deus! Jurastes vós!
Os Judeus, juntos:
Judeus: Perna de bode, braço de carneiro
Que os dois cubram de paz por inteiro!
Bendito o Deus de Jacob, ó!
Antes Ele que o Faraó!
Abriu o céu que não pode ser desfeito!
Bendito o Deus de Abraão pela manhã!
Bendita por toda e sempre a terra Canaã!
Pois bem... Mais um casamento perfeito!
Vidal: Agora, pague-nos o combinado, nem que forem centavos!
Mãe: Valha-me, Deus! Amanhã! Que... desesperados!
Se assim é, bem será
Não pode ficar assim;
Vou chamar meus conhecidos de acolá.
Para comemorar... o casamento...
Escudeiro: Oh! Não sou mais... solteiro!
Inês: Arrependeu-se por inteiro?
Escudeiro: Ora, esposa minha, nem me fale,
O casamento é um cativeiro! Agora, cale-se!
Logo vem a Mãe com algumas moças e rapazes, para fazerem a festa, e diz uma delas, Luzia:
Luzia: Inês, pelo seu bem assim veja!
Um formoso esposo, e muita alegria!
Inês: Pois bem, Luzia,
É assim que espero que o seu também... seja!
Mãe: Ora, vai ali Inês, minha filha,
E bailem todos de três por três.
Fernando: Aqui conosco, Luzia, aqui,
E a nossa querida desposada ali:
Ora, veja qual será a cantiga, qual a linha.
E eles entoam a música Cio da Terra:
Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão...
Decepar a cana,
Recolher a garapa da cana
Roubar da a doçura do mel
Se lambuzar de mel...
Fernando: A festa foi animada.
Meu casal de honrados
Que o nosso Senhor ceda um presente de entrada
E que possam viver despreocupados.
A prenda que eu dera
Fora pouco, porém sincera!
Luzia: Ficam com Deus
Com prazer e saúde,
E que Ele sempre os dois ajude
Em alcançar os anseios seus.
Mãe: Fica com Deus, minha filha,
Não virei visitá-la tão depressa
A minha benção... já tem.
Esta casa onde estamos
De prenda aos dois entrego
E vou embora, procurar outra casinha.
Senhor filho e senhor meu,
Cuida dela como sempre fiz eu,
E como, desde que nasceu,
A outros não conheceu,
Senão a você, senhor.
Sai a mãe.
Fica Inês Pereira e o Escudeiro. A jovem começa a cuidar da casa, cantando uma cantiga:
Inês: Vida de Inês é difícil,
É difícil ser Inês...
Mas agora, casada...
O Escudeiro, vendo Inês Pereira, fica irado... E grita:
Escudeiro: Você cantou, Senhora Inês Pereira?
Não acredito no que você fez!
Será a primeira e última vez!
Se eu ouvir outra vez você cantar,
Não conseguirá nem mais assoviar...
Inês: Se assim o quer, meu marido,
Farei o que me é por você pedido,
E demos o caso por esquecido.
Escudeiro: Acho bom que obedeça.
Sempre assim deve ser que aconteça.
Inês: Por que ficou bravo, marido?
Escudeiro: E precisa de motivo?
Digo só uma coisa:
Assim deve ser minha esposa...
Que não me responda, eu digo
Quando o marido fala,
A mulher se cala!
Você não vai falar
Com mulher ou homem que seja;
Nem irá à igreja
Eu já preguei as janelas,
Não porá seu rosto fora delas;
Vai ficar trancada, isolada,
E nem um pio vai reclamar!
Inês: Ó, Deus? Quantos pecados foram os meus?
Por que razão me mantém nessa prisão?
Escudeiro: Não há outro jeito
Mantê-la, sem defeito
É você, mulher, a razão...
Que mal existe guardar meu ouro?
Você é meu tesouro!
Em casa não vai mandar
Por nada, nenhum pouco;
Se eu disser: “Isto é um porco”
Com a cabeça baixa vai ter que confirmar.
Só eu posso ordenar!
Não vai você chorar!
Moço: Lá na guerra da África,
Poderia eu me tornar cavaleiro.
Escudeiro: Você deve permanecer aqui, assim;
Vai vigiar por mim
O que faz sua senhora:
Não permita que fique para fora.
– Você, trabalhe, fica por aqui.
Moço: Com tudo isso,
Não dará a um pirulito...
Escudeiro: Já tem em demasia,
Não consegue demonstrar mais alegria?
Moço: Quanto!
E depois que acabar o dinheiro?
Escudeiro: Aqui por perto tem umas figueiras, esfomeado
E espero que não morra engasgado!
Moço: Ah, sim!
Escudeiro: O que mais esperava?
Era só o que faltava...
Qualquer coisa, sem se deixar notar
Deve galinhas emprestadas do vizinho, pegar!
Moço: (E vai o meu senhor à guerra,
Vou esperar só oito dias ele voltar,
Se não acontecer, irei no mundo desaparecer)
Saído o Escudeiro, diz o Moço a Inês:
Moço: Senhora, o que ele me ordenou
Não o tenho coragem de fazer.
Inês: Pois se ele te dá ao menos o que comer,
Sua paga será cumprir o que te mandou.
Moço: A senhora cansou de trabalhar;
Eu, não tão cansado, vou me divertir
Aqui dentro a senhora eu vou trancar.
E assim fica Inês Pereira sozinha, fechando, trabalhando e cantando esta cantiga:
Inês: Quem bem tem e mal escolhe,
Por mais mal que venha, não se encolhe.
Não quero discrição
Estava a boa condição;
Eu cuidei que fosse cavaleiro
Fidalgo e escudeiro.
Nossa, que cavalaria!
Coitados dos povos africanos que ele mata
E da tola mulher que maltrata,
Sem deixar em paz nenhum dia!
Se solteira eu voltar a ficar,
Muito é meu desejo,
Que eu saiba escolher um marido,
Homem pacifico todo o ano,
Que obedeça ao meu olhar...
Seria essa minha vingança
De todo esse mal e dessa bagunça!
O moço aparece com a carta nas mãos, vinda de Arzila, dizendo:
Moço: Esta carta vem da África... ou além,
Creio ser do meu senhor.
Inês: Dê-me aqui... Se for do nosso senhor
Veremos... o que aí vem.
A jovem lê no envelope:
Inês: “À minha prezada senhora
Inês Pereira, esposa do senhor da Mata,
À minha irmã estimada esta retrata.”
De meu irmão! Em boa hora!
Será que partiu da Tavila?
Moço: Ora! Três meses que fora... passado.
Bem pequena é a carta, aliás!
Inês: Vamos ver o explicado...
Inês Pereira lê a carta, que diz:
Inês: “Muito honrada irmã,
Segure o coração
Uma triste novidade
E entenda que de Deus fora a vontade.”
Inês: Ora! O que isso...? Que sensação!
(continua)
Inês: “E não se maravilhe
Com as coisas que a vida faça,
Além de ser triste, nos embaraça
Saiba que, um dia pela manhã, indo
Seu marido fugindo
Da batalha de uma vila,
A pouco tempo de Arzila,
O matou um mouro pastor.”
Moço: Não! Meu senhor!
Inês: Moço! Dá aqui agora essa chave,
E faz o que quiser da sua vida.
Moço: Oh! Que triste despedida!
Inês: Deus meu! Que nova tão... suave!
Se por ele tenho dó,
Que um anjo venha e para o céu me levante
E se dizia tão valente, galante
E quem o matou fora um mouro só!
Guardar de homenzarrão,
Um fingido, espertalhão
Que mentia para toda a gente.
Agora um novo rumo quero tomar,
Quero da boa vida aproveitar,
E do meu lado, um manso marido;
Não quero muito sabido,
Pois bem caro pode me custar.
Aparece Lianor Vaz. Ao vê-la de longe, Inês Pereira finge chorar. Lianor Vaz diz:
Lianor: Como está, Inês Pereira?
Inês: Muito triste, Lianor Vaz.
Lianor: Por quê essa choradeira?
Inês: Choro pelo que se desfaz!
Lianor: Se pegou barriga, contente ficará.
Inês: Quisera eu herdeiros do... falecido
Mas deste bem não tomei partido.
Lianor: Filha, deixa essa tristeza,
Que a morte esse sentimento preza.
O que poderia fazer?
Case-se novamente, minha filha.
Inês: Meu Jesus, meu Deus! Estou sozinha!
Isso é coisa que se diga, sem-sentido?
A quem perdeu um... senhor marido
Tão... discreto... e tão... sabido,
E tão... amigo... de minha vida...?
Lianor: Dê o passado por esquecido
Pero Marques... parece que herdou
Dinheiro que não se cabe em um só punhado
Mas você parece viver de passado...
Inês: Basta! Agora sim... acabou!
Se herdou ou não... herdou,
A experiência me serve de lição.
Lianor: Deixe de lado esse saber,
Queira quem a quer,
Não lhe deixe faltar à razão!
Sai Lianor Vaz atrás de Pero Marques. E Inês fica sozinha, logo dizendo:
Inês: Fazer o quê?! Pero Marques seja!
Quero para ser meu marido
Quem tenha a mim bem querido
Trate-me bem toda vez que me veja.
Para usar de bom-senso espero,
Asno que me leve quero,
E não cavalo fogoso;
Antes lebre do que leão
Vem Lianor Vaz juntamente de Pero Marques. Diz Lianor Vaz:
Lianor: Sem cerimônias agora;
Vá abraçar Inês Pereira
Faça dela sua mulher e parceira.
Pero: Estou todo atrapalhado, em má hora,
E quanto a abraçar,
Assim será depois de casar;
Somente assim poderá eu aceitar.
Inês: Não aceito o seu desejar;
Quero eu logo me contentar.
Lianor: Ora! Dê-me sua mão cá.
Conhece as palavras, sim?
Pero: Ensinaram-me... Mas... Ai de mim!
Por causa do nervoso eu me esqueci já!
Lianor: Por todos os Santos! Diga como eu digo...
Pero: Que nervoso, Santo Deus
Não precisamos das testemunhas, dos seus?
Lianor: Não tenha medo, caro amigo
Pero: Muito bem! Você casa comigo
E eu convosco, no Deus de luz e centelhas
Caso não cumpra o que falar,
E quando eu a você negar,
Que me decepem as orelhas!
Lianor: Vou embora! Fiquem com o... bom... Deus!
E sai Lianor Vaz. Diz Inês Pereira:
Inês: Marido, estou saindo agora
Andar por aí afora.
Pero: Sim, mulher, vá se divertir
Pois depois também devo sair
Inês: Marido, escuta o que eu digo!
Pero: Ora! Diga! Ouço que sou seu marido...
Inês: Vou andar para onde EU quiser
Pero: Pois muito que bem...
Vá... onde quiser ir,
Volte quando quiser voltar,
Fica onde quiser ficar.
Com o que deve se preocupar
Que eu não deva... deixar?
Vem um Ermitão pedindo esmola. Moço ainda, vem a dizer:
Ermitão: Senhores, por caridade
Dê uma esmola a um pobre e por amor ferido
Ermitão de Cupido,
Desde sempre só! Tenham solidariedade,
Sou exemplo
Meti-me em um Santo templo
Cuidando e jurando eu ser um monge, um ermitão,
Até acabar a minha estrada infinita.
Tristeza grande eu contemplo;
Onde esta minha pobre alma chora
No fim de tantos enganos.
E acabando
Sofrendo do mal eu ando,
Sem esperar cura alguma.
E assim, sem esperança
De cobrar o merecido,
Sirvo meus dias ao Cupido
Com tanto amor e sem mudança
É o Santo escolhido.
Meus senhores,
Os que vão bem de amores
Dão esmola àquele sem esperança
Que habita a escuridão com suas dores
Um dos amantes
Com essa interminável andança
E rezarei
Com grande devoção e fé
Que Deus os livre do engano;
Pois, por isso sou o Ermitão,
E por todo o sempre eu serei.
Pois você, que sabe quem é, sabe do meu triste sonho.
Inês: Escuta, marido querido,
Eu tenho por devoção
Dar... esmola a um Ermitão,
E não venha você comigo!
Pero: Pode ir, mulher,
Lá nada tenho o que fazer.
Inês: Aceita esta esmola, padre, sim
Pois foi Deus que o trouxe até mim.
Ermitão: Seja pelo amor de mim
Sua boa caridade
Tenha graças, minha bela senhora,
Sua esmola mata o pecado;
Deve saber, senhora,
O que me fez fazer,
Tornei-me um Ermitão
Faltando pedaços do coração
Com o que você deixou de dizer.
Inês: Meu Deus, menino Jesus! Vida minha!
É você aquele que, um dia,
Na casa de minha tia,
Mandou-me uma florzinha
Ora! Eu era pequena, menina,
Não queria o seu amar.
Ermitão: Senhora, tenho a ti querido
E você a mim negado;
Faça com o que o tempo passado
Seja de volta ressuscitado.
Inês: Ora, meu bom padre! Eu o entendo!
Ao demo você entrego
Que com jeitinho sabe pedir!
Eu decido que lá vou ir,
Ao templo, Deus deixando.
Ermitão: Ora! E isso quando?
Inês: Digo, pelo Cupido.
Que irei um dia desses
Ao raiar do Sol. Não se apresse!
Ermitão: Minha senhora, vou embora flutuando! E desde agora esperando...
Inês (sozinha): E eu sigo, pensando...
Marido, aquele ermitão
É... um anjinho de... Deus...
Pero: E você, minha esposa,
Tão fiel, bondosa e formosa!
Inês: Marido! Sabe o que eu queria?
Pero: Que quer, minha amada mulher?
Inês: Que fôssemos com todo o prazer
Caminhando até o templo em romaria.
Pero: Não temos porque nos deter!
Inês: Este caminho é comprido
Conta um conto, marido
Pero: Não me vem nenhum a mente, mulher.
Inês: Pois bem. Passemos primeiro pelo rio,
Tire os sapatos.
Pero: Mas como?
Inês: Oras!Vai me carregar em cima de seu ombro,
Para a minha pessoa não tocar na água e sentir frio.
Pero coloca Inês em suas costas, que diz:
Inês: Marido, que bom que me carrega!
Pero: Assim te conforta?
Inês: Sinto-me como no Paraíso!
Pero: Fico feliz ao saber disso.
Inês: Heia! Pára vamos, pára!
Olha aquelas pedras
Servem para colocar lenha em cima delas!
Pero: Quer que eu as duas carregue?
Inês: Pois sim:
Uma aqui e a outra ali.
Oh! Que bonitas são elas!
Cantemos, marido, pode ser?
Pero: Tenho medo de não conhecer...
Inês: Pois muito bem! Só eu cantarei!
E você me responderá,
Toda vez que eu acabar:
Pois assim devem ser as coisas.
Canta Inês Pereira:
Inês: Marido como um búfalo me carrega,
Com mais dois pedaços de pedra.
Pero: Pois assim devem ser as coisas.
Inês: Sempre soube você, meu marido,
Eu o amo como sois;
Sempre fostes a mim preparado
A pertencer como um lote de bois.
Pero: Pois assim acontecem as coisas.
Inês: Bem sabe você, meu marido
Quanto eu a ti... quero;
Sempre foi percebido
A ser um manso e chifrudo cervo.
Além disso, tornou-se o burro que me carrega.
Levando a mim e dois pedaços de pedra.
Pero: Pois assim acontecem as coisas.
E aqui se acaba, com Cristo,
Terminando o Auto escrito.
A Farsa de Inês Pereira, autoria de Gil Vicente
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